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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Relato de uma Cambone


Relato de uma Cambone
De tanto ir e vir quis ficar, vestir o branco no corpo e na alma e fazer parte daquele balé pela paz e pela vida.
Sheilla Riekes Prochmann - Abril de 2004
Quando, pela primeira vez, estive nesta Casa, trazida pelo amor e pela dor, fiquei encantada, literalmente hipnotizada, pela plasticidade e pelo espetáculo cênico que vi. O toque dos atabaques entrou em mim no mesmo ritmo do pulsar do meu coração e eu me deixei levar pela magia e força da gira de Ogum. Pensei já ter me surpreendido com tudo naquela noite, até que me foram apresentados os Exús, daí entender porque se diz que, nesta vida se vive e não se vê tudo.
Aquelas Entidades de olhar penetrante, comandadas por Sr. Tranca Ruas das Almas, com suas capas vermelhas e negras, movimentando-se pelo Terreiro, me fizeram lembrar do fascínio, tantas vezes descrito, de Hemingway pelas touradas. Pareciam todos toureiros, numa invisível tourada do bem contra o mal; da cura contra a dor; do alívio contra a demanda.
Mesmo sem conhecer os seus “porquês”, podia-se entender, sem usar a razão, a grande batalha que se travava ali, um combate cheio de amor e “malícia”, para subjugar forças poderosas e invisíveis.
Durante uma semana não consegui pensar em outra coisa que não fosse voltar. E voltei. Para, semana após semana, ser surpreendida. Ora pela simplicidade e sabedoria dos Pretos Velhos, ora pela força e dignidade dos Caboclos. Ainda me estava reservado o encantamento pela elegância dos Ciganos, pela alegria das Crianças, e me deixei laçar pela fantástica retidão dos Boiadeiros.
De tanto ir e vir quis ficar, vestir o branco no corpo e na alma e fazer parte daquele balé pela paz e pela vida. No primeiro dia na corrente, aquilo que imaginei ser só alegria, se transforma numa mistura de emoções que poucas vezes havia experimentado na vida. Vontade de ir e de ficar, confiança e dúvida, segurança e medo, mas fiquei mesmo assim, ciente de que estava fazendo a escolha certa e dando uma chance, não para a Umbanda, mas para mim mesma.
Sempre gostei de desafios, e este foi dos bons. Tive de aprender a deixar soltar as amarras que me prendiam ao domínio de mim mesma, a não ter sempre o comando absoluto de tudo, e mesmo assim, conciliar consciência e ausência.
E aí, fui cambonear, e outras lições me aguardavam. Lições de dedicação e humildade. Percebi que não bastava respeitar, era preciso servir. Mas não uma servidão cega, e sim um servir onde se compartilha ensinamentos, donde se suga todo proveito possível; até entender que estava servindo a mim mesma. Cada charuto que acendi, cada bebida que servi, cada ponto que lavei, acenderam em mim uma chama que arde, mas não queima; me embriagaram de esperança e lavaram de minha alma toda e qualquer dúvida que ainda resistia em mim.
Toda vez que achei que não me surpreenderia com mais nada, fui pega pela minha própria ingenuidade. E chorei todas as lágrimas de emoção a que tive direito.
Quando vi Sr. Akuan repreender com os olhos cheios de amor, lembrei do que é ser pai ou mãe. Quando vi Sr. Folha Verde emocionar-se em meu casamento entendi que vale a pena, sempre, chorar de emoção; quando levei um imenso puxão de orelhas do Sr. Rompe Mato e, ao me desculpar ouvi dele “eu só brigo com quem gosto” me certifiquei da profundidade de uma verdadeira relação de amizade e afeto.
No dia em foi jogado meu Obi, limpei meu coração de todo e qualquer desejo, e fui presenteada com os ventos da força e da coragem que são soprados por Iansã. E ser filha dela não é fácil. Tenho que dominar a intensidade de meus próprios ventos, para que eles refresquem e limpem, mas não destruam. E a não despejar sobre Ela, a responsabilidade pelos meus próprios vendavais. Eu continuo ventando, assim como ela, mas já consigo transformar raios e tempestades em chuvas mais amenas. Pelo menos venho tentando com afinco. Às vezes consigo, às vezes não, mas tenho contabilizado apenas os êxitos, para não me entristecer com o que não consegui.
E continuo lavando tábuas, uma a uma. Quando esfrego uma tábua, limpo de mim toda mágoa, quando quebro uma vela, quebro minhas resistências, quando afio um ponteiro, torno mais afiado meu desejo de um dia, quem sabe, chegar onde devo ou preciso. Venho me apaixonando constantemente. Deixei-me seduzir pelo humor ácido da minha querida Velha do Cemitério, que me chamava de “metida à sabichona e curiosa”, e que confiou a mim o motivo pelo qual vem servindo a quem precisa, contando-me sua história, que tentei reproduzir da maneira mais fiel possível, para conhecimento de todos. E tive que dominar o ciúme de vê-la camboneada por outra pessoa que não eu. Fui tomada pelo carisma da Cigana Carmen, que ao me emprestar seu espelho, pediu que nele eu visse refletido quem realmente sou. Encantei-me com o comportamento cheio de humor e sabedoria de Chermira, que me ensinou a ver o amor de um modo surpreendente e inesperado; pela devoção de Vovó Maria Conga por Nossa Senhora dos Açores, e que com muita paciência me contou que trançava palha de cana, infinitas vezes, até a raiva passar (como seria bom se aprendêssemos a trançar nossa própria raiva, neste cativeiro em que vivemos!).
Convivi com a força dócil do Sr. Vira Mundo, e com a magia encantadora de Mama Rosa, cujo perfume pude sentir durante dias, dando a certeza de sua presença. Fui tomada pela “pontaria certeira” das cartas de Ramirez, e compartilhei a sua felicidade ao reconhecer entre os que ali estavam, a sua filha de carne; e pela a alegria, por vezes quase infantil de Vovó Catarina, (só não aprendi, ainda, a acender cachimbos, mas eu chego lá) , isso, sem falar na sua vitalidade, deixando-me exausta mas feliz, de tanto andar atrás dela.
Presenciei Tio Antônio aborrecido e desconfortável por beber uma bebida que não era a dele, mas mesmo assim, ser gentil com quem esteve em sua frente. Até que, ao cambonear Caboclo Boiadeiro, eu pude ver, com olhos que nem sabia ter; seu rosto de homem agreste, magro e moreno, se formar por sobre as feições loiras do seu cavalo. Minha emoção foi igual à dele, choramos os dois, e ouvi dele que a emoção é um dos ingredientes indispensáveis à gira de Boiadeiros, que só com esse sentimento conseguimos tornar concreta e possível a força destes “homens” tão ligados a energia que vem da terra. Disse-me também, que por vezes é mais fácil tanger gado que homens, que estes animais de tamanho e força incríveis, tem a docilidade de se deixar conduzir, que nós não temos, mesmo quando precisamos ou pedimos.
Aprendi a compreender o peso da dor do Caboclo Guará, ao ver sua tribo dizimada e seus filhos mortos por ele mesmo, na tentativa de solver com sangue, sua incapacidade de escolher a hora certa de guerrear (quantas vezes nós mesmos não adiamos nossas batalhas e, quando por fim, nos decidimos, lutamos a luta certa na hora errada). Hoje respeito seu silêncio cheio de dor e arrependimento, e sei que o simples fato dele estar ali já nos ajuda, sem que precise dizer uma palavra sequer.
E o que dizer do Sr. Ogum Matinata? E da minha satisfação em conseguir romper a sua resistência inicial ao cambone novo? (E aprendi com a Uca a não ter ciúmes dos novos cambones e a quem agradeço por todas as vezes que recorri a ela e fui ajudada). Sr. Matinata, agora, me conduz pelos caminhos da sua sabedoria, pelos segredos da magia do seu ponto, e pelo modo quando, ao nos chegar pelas costas nos faz escancarar o coração.
“Quem vê cara, não vê coração, filha!”, me disse ele. E eu fico ali, segurando seu coité, bebendo dos ensinamentos que ele, no seu modo sisudo de ser, me dá com tanta boa vontade. Sr. Táta Caveira mereceria um capítulo à parte. E ai de quem não andar na linha! Inclusive eu! Ele exige na mesma proporção que entrega. Diz todos os palavrões que eu mesma tenho vontade de dizer, e por vezes digo. Fica indignado com a falta de vontade e força das pessoas, mas os acode sempre. Fica bravo, mas protege; xinga, mas ajuda; reclama, mas está sempre lá, às vezes de bom, às vezes de mau humor, como todos nós, e recebe a todos com aquele olhar maroto de “lá vem mais um...”. Conversa com Sr. Morcego,com a intimidade de velhos amigos, ao mesmo tempo em que me cobre com sua capa, sempre que pressente que eu preciso de “colo” e diz que só eu mesma para gostar de “colo” de Exu. E eu gosto!
E assim me é permitido ir transitando entre essas Entidades maravilhosas, entendendo que estão mais próximas de nós do que podemos supor, como disse a Velha do Cemitério, quando choraminguei que estava com saudade dela: “Só temos saudade de quem está longe, filha!”.
Só não entende quem não quiser! E vou continuar lavando tábuas, acendendo charutos e velas, servindo bebidas, pois é o mínimo que posso dar, pelo muito que tenho recebido.

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